A Última Iguana (4)
A recordação do quanto tinha andado no interior da mansão tornava plausível a resposta que William Ashton lhe dera: tudo maior, ou mais longo. Olhou para a pequena gaiola de arame onde a iguana se mantinha imóvel. Só os solavancos que o automóvel dava na estrada esburacada a faziam sair do torpor para logo tornar a mergulhar na imobilidade. Um bicho estranho e raro, como aliás todos os animais eram para todas as pessoas daquele tempo: estranhos e raros.
A luz ressequida do sol iluminava o deserto estéril, formado pelas esperanças perdidas de sucessivas gerações de homens. Estava gasto, aquele mundo, e chegaria o dia em que só o vento cruzaria aquelas paragens desoladas. Lasthope ainda era muito longe.
Antes do assalto à mansão de William Ashton fizera o seu trajecto habitual, vendendo quase tudo o que trouxera dos armazéns que já não pertenciam ao velho Murphy. Um cortejo de terreolas sem futuro, vivendo o presente ao ritmo lento de quem sabe que qualquer esforço maior é desnecessário, porque inútil. O único objectivo que todos tinham era viver o mais possível, vendo de ano para ano tudo mais seco e estéril.
Em toda a sua vida só vira chover uma vez: esparsas gotas assustadas, receosas de tocar o chão sedento e logo desaparecer do mundo. Uma única vez em todos aqueles anos...
Os solavancos anormais do carro despertaram-no das suas reflexões. O motor começou a engasgar-se de uma maneira radical até parar. O carro imobilizou-se alguns metros à frente e John Carson-Smith viu tudo invadido pelo silêncio de túmulo do deserto vazio. Aquele automóvel só se avariara uma única vez ao longo de todos aqueles anos e a sua segunda falha tinha logo de ser agora, num momento tão delicado. Saiu para o sol do princípio da tarde e foi ver o motor.
- Merda! Uma mísera bomba de corrosão... – no lugar do motor encontrava-se uma massa amorfa de óxidos vários, lembrança de uma máquina que ainda há poucos minutos funcionava perfeitamente.
"O velho tinha esta carta na manga," pensou, "por isso não se importou muito que eu trouxesse o animal. Ele aqui talvez sobreviva, eu não..."
As bombas de corrosão eram insidiosas, só se detectavam depois de transformar tudo à sua volta num amontoado de óxidos, um monte de ferrugem de tons sombrios que só levemente lembravam o objecto original. O velho réptil enganara John Carson-Smith...
Os víveres que tinha no carro eram suficientes para chegar a Lasthope se fosse de automóvel, indo a pé esgotar-se-iam bem antes do destino. Se conseguisse escapar, quando voltasse à sua cidade não reconheceria quase ninguém, pois certamente já se encontraria fora do seu período de vigília, mas isso era um problema que não o preocupava grandemente.
A ambição perdera-o, e em vez dos milhões que a iguana valia podia ficar apenas com um punhado de areia seca nas mãos inertes de moribundo. Pegou na mochila com a comida, tapou a gaiola com um pano e agarrou nela, disposto a empreender a caminhada imensa. Carregou o chapéu de aba larga mais para baixo e deixou o carro inútil para trás. Alguns minutos depois era apenas um ponto mais escuro na vastidão dourada.
Os dias esgotaram-se céleres e a comida também. Não se alimentava há dois dias e as forças começavam a faltar-lhe. Se tivesse víveres para mais quatro ou cinco dias conseguiria atingir Lasthope, mas assim não chegaria lá. Desembaraçara-se de tudo o que não necessitava e transportava agora apenas a gaiola com a iguana.
O sol do meio-dia castigava-o impiedosamente e ele procurou uma sombra, rara naquela desolação. Acabou por encontrar uma, em instável equilíbrio aos pés de um rochedo. Abrigou-se e à gaiola e bebeu um gole diminuto da pouca água que lhe restava. Tirou o pano que tapava a pequena jaula e olhou para o animal. A iguana parecia gostar do calor sufocante, mas John Carson-Smith sentia-se derreter naquele inferno. Olhou para o céu azul sem nuvens e fechou os olhos, pensando nas festas do falecido Bill Morton e não as achando tão aborrecidas como antes. Daria tudo para estar numa delas naquele momento.
Lasthope surgiu sem aviso, uma mancha escura no seio do deserto, aninhada num pequeno vale. John Carson-Smith acelerou a passada para antecipar o final da longa travessia. Tinha saudades da sua casa simples e não estava nada preocupado com a multa que iria pagar pelo atraso no regresso ao casulo. Era bom estar vivo, mesmo não sendo aquela vida grande coisa.
Olhou para as fachadas sujas dos prédios e depois para a areia que tentava cobrir o tapete de asfalto das ruas. As pessoas olhavam para ele, não era vulgar surgir um desconhecido vindo do deserto pelo seu pé. A propósito de pessoas, John lembrava-se de uma que receberia a sua visita no seu próximo período de vigília, e aí esclareceria todas as coisas obscuras e misteriosas que teimavam em ocupar a sua mente. Tudo maior ou mais longo, dissera ele... Velho ignóbil, que lhe preparara aquela armadilha tão baixa. No fim de tudo ficara como no início, ou mais pobre: perdera um amigo, daqueles que não eram como as serpentes...
O preço da sua sobrevivência fora muito caro, mas fora necessário. O velho William Ashton também tinha dito que a iguana não valia a vida de Bill Morton e John, depois de pensar, chegara à conclusão de que também não valia a dele.
A gaiola ficara vazia à sombra do rochedo, a pequena porta de arame aberta, esperando que o vento persistente do deserto acabasse por cobri-la. Perto dela, já meio enterrados na areia amarela, estavam os ossos da última iguana.
FIM
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